quinta-feira, 15 de julho de 2010

Isabela e o mar

Em tempos de pesca era comum Isabela se perder em vistas pela vila. Tudo prendia a atenção de seu olhar. Aquela figura de pele morena e cabelos negros e longos que se misturavam ao vento contava muitas histórias. Falava de coisas que só se ouvia da boca dos viajantes. Falava de monstros e serpentes marinhas. Falava de tempestades que no mar faziam grandes embarcações se desfazerem como se fosse cascas de amendoim esturricadas pelo fogo excessivo. Vez por outra citava ainda um tal de Netuno, rei dos mares...
Ah, Isabela! Isabela e seus devaneios! Suas palavras iam mais longe que a imaginação de muitos do vila. Mesmo os mais velhos não se limitavam e falavam aos cochichos que Isabela enlouquecera depois que o velho marinheiro a deixou.

A ida do marinheiro significava mais que tudo um certo alívio para os pais de Isabela. Todos da vila comentavam: como pode a filha de tão bondoso pescador se deitar com um homem mais velho até que seu próprio pai?

Do marinheiro que partira há quase três anos com promessas de vida melhor para Isabela e, quiçá, o sossego definitivo de Nido, o cansado pai de Isabela, pois não teria mais que dar explicação aos bisbilhoteiros da vila, se sabia pouco e nunca mais se teve notícia. Alguns até questionavam a existência do marinheiro misterioso enquanto outros diziam já até ter dividido alguns tragos de aguardente.

Isabela quando perguntada sobre o marinheiro explicava que ele travava batalhas colossais com feras do mar e piratas sanguinários e que tão logo terminassem as batalhas ele voltaria para apanha-la e então se casarem. Silêncio se ouvia enquanto na presença de Isabela. Quando se afastava, era possível ouvir as gargalhadas. Isabela não se importava. Com ares de indiferença repetia para si mesma: Vão rindo enquanto se pode rir.

Os pais de Isabela, por outro lado, desmentiam a filha:

- Coisas de gente jovem! Não há de se dar ouvidos!

De fato Nido e sua esposa cogitavam se mudar dali. Já não havia mais fôlego para desfazer os ditos de Isabela. E a cada dia começavam a ter mais fé que Isabela realmente não estava tão bem da cabeça. Mas ir para onde? Na cidade seria mais fácil arranjar um tratamento para a filha, mas como iriam custear tudo com uma vida humilde de pescador? Temia uma vida miserável pelas ruas da cidade. E com razão!

- Maldito o dia em que esse marinheiro apareceu nessa praia – repetia Nido, contrariado.

Ione, sua esposa, tentava sem sucesso consolar Nido.

- Calma, homem! Um dia isso vai passar! Tudo passa, tudo passa...

- Passa quando, mulher? Quando eu for só carcaça na boca dos urubus?

Os dias se passavam e o outono avançava. Na vila nada mudava.

Certa vez os pescadores reunidos festejavam a volta para terra firme depois de meses pescando em alto mar. As esposas festejavam a volta dos maridos e os filhos as voltas de seus pais, tios, irmãos e primos. Lá também estavam Nido e Isabela. Ione já havia se retirado para casa. Nido e Ione se desentenderam porque ela havia dito que pressentia um mal que estava por vir e que seria ainda naquela noite e ele, já alcoolizado a tratou com grosseria.

- Deixa de histórias, mulher! Já não bastam as alucinações de Isabela, tu agora me vem com uma história dessas. Nem esta pinga que eu tomo me traz tal invenção!

Isabela, em meio às festividades, contava suas histórias para as crianças, os únicos seres que a levavam a sério naquela vila. Miravam fixamente e com tom de espanto Isabela enquanto ela proferia as histórias das serpentes marinhas, dos piratas e de como seu marinheiro e futuro marido se esquivava de tais perigos. Tão concentrada que estava nem notara a discussão de seus pais.

A hora avançava e pouco a pouco o público de Isabela ia se desfazendo. As crianças já caíam de sono e se entregavam aos braços de suas mães que as levavam para casa e por lá mesmo já ficavam. Pouco tempo depois Isabela era das poucas mulheres que ainda estavam lá. Alguns pescadores já estavam em suas camas. O som das altas gargalhadas era aos poucos substituído pelo repetitivo soar do vento e das ondas. Restavam na festa apenas os velhos e os bêbados desfalecidos ao chão. Isabela se afastou e foi então sentar-se na prainha. Se pôs a olhar o mar. Era como se procurasse em cada gota de água, em cada onda que quebrava, em cada som algo que pudesse revelar o paradeiro de seu grande amor.

Assustou-se ao ver aquela jovem e corpulenta figura masculina se sentar ao seu lado. Era Tião. O pescador mais jovem de toda a vila. Tinha músculos bem posicionados, cabelos e olhos tão escuros quanto a noite que tomava a prainha.

- Queria saber por que uma moça tão bonita como você não deixa o mar e cuida de viver sua vida na terra.

- Já eu queria saber por que você não deixa minha vida e vai cuidar da sua.

-Isabela, Isabela, Isabela – disse, Tião pausadamente - sempre Isabela. Quando vai perceber que o homem que vai satisfazer teu fogo de mulher sou eu?

-Tião, você sabe que entre eu e você não pode existir nada! Eu sou de outro homem!

Tião agora enfurecido e tomado pelo torpor alcoólico levantou-se e puxou bruscamente Isabela pelo braço.

- Realmente você está perdida nesses sonhos. Se ninguém da vila acredita nas loucuras que fala não vão acreditar em mais nada do que você disser. Se não vai por bem...

Tião rasgou o fino tecido da roupa de Isabela e num piscar de olhos ela estava nua e assustada. Protegia com mãos e braços sua nudez. O medo se estampava no seu rosto moreno

-Tião, o que você pensa que vai fazer?

- Agora eu não penso em nada, só faço! Quem muito pensa pouco faz!

Ali mesmo Tião dominou Isabela. A nudez de Tião ia de encontro à de Isabela, sua então prisioneira. Isabela, em pânico gritava e se debatia. De nada adiantava. Era uma criança lutando contra um faminto leopardo e seus gritos não poderiam ser ouvidos pelos bebâdos. Notando seu fracasso em lutar, Isabela, olhou bem dentro dos olhos de seu agressor e falou:

- Agora que estou indefesa você me tem! Mas um dia eu terei de volta essa noite em que você me roubou de meu futuro marido! Ele vê o que você me faz, ele vê!

Tamanha a seriedade com que Isabela pronunciava tais palavras que mais pareciam maldição. Tião quedou-se impressionado. Pescador jovem, porém experiente, já escutara diversas histórias de monstros marinhos. Não chegava a dar os devidos créditos às tais histórias. Ria ao final de cada uma delas, mas no fundo ele se impressionava. Se pegava pensando em como essas histórias poderiam ser apenas criação do homem.

Isabela parou de se movimentar e debater. Falou:

- Aconselho que aproveite este momento, bravo Tião! Lembre-se de cada centímetro que me invade com sua virilidade. Lembre-se, Tião, lembre-se. Lembre-se porque esta será a última noite que possuirá uma mulher.

Isabela caiu numa gargalhada que era bem mais potente que seus gritos. Agora sim Tião se assustou. No rosto de Isabela não havia mais cor. Aquela pele morena, queimada de sol estava quase transparente. Tião vestiu-se ao notar que Isabela estava desacordada e correu assustado. O sol estava por nascer.

Já era quase dez da manhã quando Rosa alcançou esbaforida a porta de Nido. Ainda sob o efeito do álcool da noite anterior, Nido só pensava em pedir para Rosa parar de gritar e falar o que lhe assutava.

- É Isabela! Uma tragédia! O vestido, o vestido e... sangue! Na prainha...

Com o susto Nido se livrou do álcool que ainda corria por suas veias. Segurando Rosa pelos ombros sacudiu-a.

- O que tem Isabela? Responde! Ela não veio pra casa?

Virou-se para Ione que estava sentada na cozinha olhando para o nada, pela janela que dava para a prainha. Largou Rosa e foi em direção de Ione.

- Vai ficar aí parada, Ione? Cadê nossa filha? Cadê Isabela?

Ione ainda olhava fixo pela janela.

-Aconteceu, Nido! Aconteceu!

Ione se limitou a essas poucas palavras.

- O que aconteceu, mulher? Do que você tá falando? É de Isabela? O que aconteceu com Isabela?

Como Ione se emudeceu, dirigiu-se a Rosa.

- Fala mulher!

- O pessoal achou lá na prainha o vestido que Isabela usava ontem à noite na festa. Tava rasgado e sujo de sangue.

- E onde tá Isabela?

- Ninguém sabe! E tem também pegadas que saem do vestido e vão até o mar... Parecem pegadas de um homem forte e pesado porque são grandes e profundas.

Nido cai em desespero.

- Vou reunir toda a vila pra ir atrás de Isabela e depois...

Interrompe Rosa:

- Ir atrás de Isabela e de Tião, que também ninguém sabe do paradeiro dele.

Nido parou em si, fixou o olhar no infinito. Lia-se claramente nos olhos dele a palavra desespero. Saiu atordoado pela porta sem emitir som que se entendesse.

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